Filha

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o grama pesou a grama, a gama posou no gama

a grama pisou no grama , o gama pousou a gama

o drama passou a trama e a trama o levou –

foi sem querer jardim que a mariposa

se juntou ao barro no para-brisa

areia de onde você ficou

essa duna-vacância que deixa, no asfalto, a velocidade

(e a cratera que a aguarda)

programa em que vibra meu pensar sem você

(lua e o desfazer rasuras)

na página, a dobra em que vibra a lâmina

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passa novembro e traz orações quebradas

entre elas, a que sacode novo dezembro sem protagonismo

voz que me atrasa para que se desacelere o peso-gato dos anos –

este homem que aprenda o seu comportamento

(e onde os homens velhos se escondem)

corpo sem tintura dos arames que farparam

quando o erro que havia no menino passou

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na memória duas noites brigam, uma esperneia

no ombro e no queijinho do selo luz premiada da Tevê Você

que mama minha mama rebelde maisena que mal arrodeia

loucura sem sal, camiseta sem mel

popularidade que não calça medalha

mágico-sincerona, mão de arria, mas que tomba de escuro

e com ele monta a lua, come tua boca, vai, centauro, arreia

gentileza abrasiva, sorriso chumbo de afundar no lugar das picas

acostuma a dizer que não vai levantar da cama

se as patas dianteiras dos cavalos voltarem ao cão

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tire a máscara

descubro a venda

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teus olhos brilham a claridade da chuva

refletida no asfalto da Vasco

e tento não pensar nas vezes

em que não consegui respirar

por não conseguir saber

como continuar sendo a pessoa

pra quem tu disse um dia

que teu peito ardia de tanta saudade que sentia

(e eu não sabia como me esforçar mais, eu não sabia)

então os anos passaram e fiquei esperando

que a beleza abandonasse teu rosto

mas os anos passaram (excesso sem contas)

tenho menos tristeza e tua beleza está aqui

.

nos teus olhos rói o céu

que do azul LATAM paulista

verga sua ereção ensaio de chuva

lenta pulverização-agrotóxico

ofertando amor no obséquio

ardendo suas estrelas de tevê

enquanto aparta suas iscas

(disfuncional, rebu) e

entre estantes professoras, o fôlego

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sem perguntar se precisa tirar os sapatos

e sem tirar os sapatos, espantado com o tamanho da sala

o poeta entra no apartamento

carregando uma sacola plástica com cinco potes de molhos

e um pacotão de tortilhas de milho

a comida que sobrou do encontro de despedida

com as alunas da oficina de escrita em seu apartamento

na noite anterior (viajará para outra cidade amanhã)

diz que seria um pecado descartar aquelas comidas

preparadas com tanto esmero por suas alunas

que os molhos estão ótimos, gostosos mesmo, e

mais uma vez esquecido de que não posso ingerir condimentos

reforça o elogio sobre o bom tamanho da sala –

um poeta de verdade não deveria ser tosco assim

(presentear seus restos a quem não fará proveito) –

se a poesia está nos restos, a sensibilidade precisa de uma concha

para se guardar (e tem isso da amizade também) –

a tosquice é um guarda que protege

(com o músculo de sua fidelidade) a solidão do poeta –

a poluição é seu trabalho, é o meu também –

combinados na brutalidade deste nosso sonhar antigo

ele bebe o chá que lhe preparei

e quando se vai despejo os molhos na pia da cozinha

lavo os potes, acondiciono no saco do lixo seco –

insisto, um poeta precisa saber amar os restos

que são a batalha (e o respiro)

das poetas e poetas que ama – eu sei

as tortilhas me servem

sua hóstia é veneno que me aguça, linguagem-santa

cão-açúcar enquanto escrevo meu resto de dia

(esta sina me guia, e aplaudo)

na luz-domingo que recebe o adeus neste poema

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a luz arrasta pinturas, costura de memória –

na reticência dos músculos

o alado desse carregar-descarregar

verbos elásticos que não param em corpo jovem

porque jovem é ranhura que estoca susto demais

pedras onde grunhem a cidade

goela-orixá, caixa, causa da luz que alegora

dentro do ninho do olhar dinossauro das crianças

enquanto o tempo sorteia seu limbo (e nota)

o verão que empurra o vento

a lente hormonal (a gripe 1g) do teu aceitar –

pelos canteiros da Oeste, sujeira da tua fome

retirando linguagem da linguagem do meio-dia

do impossível (guardanapos da Orides que faltou)

folhagens, catando a brisa, semeiam bilhetes-únicos

por essa lâmina sem lírica e sem comunidade

abanam os seus falcões

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pelo reggae do caminhar na Doutor Arnaldo

sem entender se é noite ou dia, sou a procura das janelas

erguidas diante da floresta (o talho de sua falsa premonição)

o não saber competir destes muros de cemitério

contra o asfalto da avenida (desintoxicado pela sinalização)

contra o cinza ilusório das fachadas do Hospital de Clínicas

contra a carga daninha de seus prédios sumida na cerração

contra a margem-litorânea na lataria das bancas de flores

seu colorido-prainha moldado para acompanhar a vida

pronto para acompanhar a morte –

sem irmãs, o antirreggae da zona oeste de São Paulo

a sonoplastia da ferragem dos automóveis

ocupando as pistas e produzindo uma harmonia

que inexiste na vida – sou a antena, a triste providência

da linguagem, velha, ainda ansiosa por ser poeta

o passo da nova dança que de si logo será perdida

dentro do tempo e seu caminhar

na cal da minha pele e no meu código postal

(plasticidade, maldita siamesa)

esse tempo que juram ser vaso, mas revolta

não perde sua ardência florestal

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os trens não se atrasam, estantes não juntam pó

poetas que não se acomodam na geometria do ocultar

poemas que já são todos os poemas que não foram escritos

ainda assim, há tempestade

uma tempestade da qual não é possível recuar –

é levitar e não saber do impossível

(lá, Deus aluga seus guardas-sóis coloridos)

sono de anzóis, pólen embrutecido

aprendendo, em sua contratura, o folhear dos cílios –

então você me diz que não conseguiu dormir

em seus olhos, de novo, o brilho do Rivotril

e o tempo que nos protege enquanto aceno

ao que vai se deixando (e ao que vai ficando)

pela linguagem que desaprendemos

e de mãos dadas ainda dizemos ser nossa

essa luminosidade, esse reincidente amor

e, por ele, o que, na secura do andar, não sumiu

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pelo trincar das falas sem voz

(sem fôlego) roendo a descostura dos dias

em que montou acampamentos

ao redor da combustão

(o nunca dormir de plantas sem água)

ao redor da alegria que, de angústia, o desarmou –

nesse adeus, ele não desiste

ao redor do próprio equívoco, não desiste de ser herói

por meio dessa língua que não canta

(que é farda e destroçar)

enquanto pensa se voltará a abraçar o amigo

que o esqueceu –

sonhando em não ser atalho

e não ser medo junto ao que se foi nos catálogos –

fingindo que o tempo de não saber, se escapar, não armadilha

pois duvidar, às vezes, é pela volta de querer gostar

sem pensar demais que a dúvida é exagero e (mesmo sombria)

não se troca

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tu voz aliança, acende o contágio

em pedaços essa alegria de não saber

que do céu é o azul em teu olho nada frágil

doma dessa eletrocussão

Narciso envernizando com suas dunas a piscina

que devolve terra à vista

quando sugo da tua boca meu naufrágio

o corpo fervendo de não abandonar teu sim

(timbre ágil desse verde, ouro frágil)

toda vez que fico pr’amanhã

Calibã gazeando pedágio, louco

de juntar a semente

que é do alto de onde veio o teu voo

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uma pessoa branca

sem poder de ferro

pura em país negro

é compra distante

do clube das pessoas brancas

que movimentam as chaves da fornalha

(a máquina do quando é nunca o fim dessa dor)

este forno é negro

o fogo dele é negro

faz cinzas do mestiço que se deseja branco

purificado em país tão negro

quando dança por sua fantasia

e se dobra à lei

(à sombra que a produz em verbo-áureo)

sem rodar seu carvão

como todo covarde

como todo grande impostor

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calor que espera porque recusa governo

(sobre pele e unhas roídas fingindo banho de sol)

resto que foge do acerto

quinta-feira que teima em voltar ao domingo

quintais que empoçam nossa procura

pensamento em despreparo sem ruptura

mãos que se desacomodam quando o coração está feliz

e a cabeça não sabe se tem direito de se sentir feliz

altar que foge quando fica pronto

atrás de primeiros beijos sem fim

(seu rosto e as pontes quando saltam de mim)

e, sim, um mar quando a chegada ao lar é ponto

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desde vinte e dois de agosto de dois mil e três

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